Em 11/04/2025 o CONFAZ editou o Ajuste SINIEF 02/2025 (DOU de 16/04/2025)[1], dispondo “sobre os critérios e procedimentos para a temporalidade e a destinação de documentos fiscais eletrônicos tutelados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, Estados e o Distrito Federal.”
A reportada publicação foi o suficiente para que os incautos e desavisados entrassem em pânico e começassem a discutir se teria havido mudança dos prazos habituais de prescrição e decadência[2], ampliando-se o tradicional quinquênio para além de uma década, trazendo à lume uma discussão de pura interpretação da norma e do seu papel.
Saliente-se, como já dissemos em obra própria[3], que Ajustes (assim como Convênios ICMS e Protocolos ICMS) não são leis em sentido estrito, seja sob o ponto de vista formal ou material, não podendo cumprir o papel delegado às primeiras[4], mas apenas acordos entre os Estados/DF que necessitam de juridicização para sua implementação efetiva no ordenamento interno, em respeito ao princípio constitucional da competência de cada UF descrita no art. 155, II do texto magno.
O mesmo texto que, aliás, nos lega importante salvaguarda (segurança jurídica) ao estabelecer o princípio da legalidade estrita (ou cerrada como também dito), garantindo ao contribuinte que apenas leis (art. 150, I[5]), em sentido estrito (formal e material), em sintonia com o art. 5º, II[6], possam exigir ou deixar de exigir algo, o que significa dizer que, o aludido Ajuste não pode, e tampouco teve a intenção, de suplantar a regra da prescrição e decadência estabelecidas em lei pelo CTN.
Mais que isso, ao tratar de temporalidade o Ajuste SINIEF, diferentemente do que se possa imaginar, não trata de regras que venham a ferir a anterioridade e irretroatividade constitucional[7] o que um rápido exercício exegético permitirá observar que não se está retroagindo no tempo para ampliar responsabilidades do contribuinte para além dos cinco anos já comentados alhures, pois sendo o tempo, um fato, no dizer de Heleno Taveira Torres, “o direito não se poderia aplicar sem o tempo ‘do fato’”, sendo que “direito cria seus mecanismos para organizar a atividade do homem e do Estado ao longo desse contínuo marcado pelos fatos jurídicos”; nos ensinando ainda que, “costumeiramente, que toda norma deve ser irretroativa e que seus efeitos protraem-se para o futuro; com isso, qualquer retroatividade seria uma excepcionalidade.” [8]
Não é à toa que, em matéria tributária, o artigo 106 do CTN estabelece a aplicação retroativa apenas em duas situações que não estão contidos na situação ora em análise:
- em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; e,
- tratando-se de ato não definitivamente julgado:
- quando deixe de defini-lo como infração;
- quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
- quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.
Não bastassem tais argumentos, reforçando-se a ideia de que um Ajuste não poderia suplantar o império da Lei, por ser um acordo entre UFs, um convênio no sentido genérico como descrito no art. 100, IV do CTN[9], encontramos respaldo para o entendimento limitado de aplicação à esfera administrativa em sua ementa e preâmbulo, conforme constante dos artigos 5º e 6º da Lei Complementar 95/98[10] que estabelecem o seu objeto e base legal de forma precisa de maneira a deixar claro o âmbito de atuação.
Ressalte-se que o citado instrumento “dispõe sobre os critérios e procedimentos para a temporalidade e a destinação de documentos fiscais eletrônicos tutelados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, Estados e o Distrito Federal”, o que vale dizer que os documentos fiscais eletrônicos já entregues aos Estados, Distrito Federal e RFB, no âmbito do Projeto SPED, pelo período mínimo de 132 meses (11 anos) só poderão ser expurgados (limpos no jargão da informática) após tal período, funcionando a norma, antes de mais nada, para padronizar o tempo de guarda dos mesmos, como se pode depreender do de sua cláusula primeira, rigorosamente em linha com o art. 7º da também referenciada LBC 95/98, que deixa preciso o objetivo da mesma:[11]
Cláusula primeira Os Estados, o Distrito Federal e a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil acordam em padronizar o prazo mínimo em 132 (cento e trinta e dois) meses, contados da data de autorização do documento, de guarda e expurgo dos arquivos no padrão “Extensible Markup Language” – XML – dos Documentos Fiscais Eletrônicos – DF-e – a seguir indicados:
Não bastassem todos os fundamentos e objetos delineados, notadamente as limitações constitucional do instrumento em análise[12], é de se observar ainda que o preâmbulo do supracitado Ajuste SINIEF, produzido no âmbito do CONFAZ, na 196ª reunião fundamenta-se no art. 199 do CTN, denuncia de forma clara o seu intento informativo, apenas e tão somente, entre os órgãos referenciados:
Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Parágrafo único. A Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)
Por fim, aos que buscam compreensão da razão de tal medida, que não avilta, frisamos a questão quinquenal da prescrição e decadência, lembramos que o CONFAZ, dentre suas competências[13] conhecidas (celebração de convênios, para efeito de concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS – art. 155, II, § 2º, XII, “g” da CF/88) deve:
- promover a celebração de atos visando o exercício das prerrogativas previstas nos artigos 102 e 199 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, como também sobre outras matérias de interesse dos Estados e do Distrito Federal;
- sugerir medidas que visem à simplificação e à harmonização de exigências legais;
- promover a gestão do Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais – SINIEF[14], para a coleta, elaboração e distribuição de dados básicos essenciais à formulação de políticas econômico-fiscais e ao aperfeiçoamento permanente das administrações tributárias;
- promover estudos com vistas ao aperfeiçoamento da Administração Tributária e do Sistema Tributário Nacional como mecanismo de desenvolvimento econômico e social, nos aspectos de inter-relação da tributação federal e da estadual;
Dos dispositivos acima referenciados fica patente que o papel do Conselho não se limita à relação entre Estado e Contribuinte, mas entre os próprios entes públicos, sendo esta, em essência, a razão do Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais, o que convalida a norma no forma de um Ajuste, que ao seu tampo, ainda cumpre o papel de harmonização de procedimentos no contexto do ICMS estabelecendo a extraterritorialidade a que alude o art. 102 do CTN.[15]
Desta forma, por tudo o que se disse, com os fundamentos apresentados, não se estaria falando em alteração de prazos que digam respeito ao contribuinte, mas sim à administração fazendária padronizando apenas o interesse de 27 entes federados e da União, via RFB.
Fica por fim a sugestão para observância quanto à guarda interna mais como medida de governança e de cuidados adicionais que eventualmente possam ser úteis ao contribuinte apenas, não havendo maiores efeitos a serem considerados.
José Julberto Meira Junior – OAB/PR 15.765 (Escritório Curitiba)
[1] Disponível em www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/ajustes/2025/ajuste-sinief-2-25. Acesso em 28 abr. 2025.
[2] Que como regra geral, seguem os artigos 173 e 174 do CTN, ou ainda, em grau de exceção, a do artigo 150, § 4º do mesmo código.
[3] MEIRA JUNIOR, José Julberto. Convênios no âmbito do ICMS: moralidade, legitimidade e legalidade. Curitiba: Juruá, 2021.
[4] Exceção constitucionalmente admitida foi o Convênio ICM 66/88, que cumpriu determinação constitucional provisória (sic) de regular o ICMS – até que sobreveio a Lei Complementar 87/96 – nos termos do § 8° do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, que também seguiu a orientação da Lei Complementar 24/75, que trata dos Convênios no âmbito do ICMS (desde o antigo ICM).
[5] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;“
[6] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
…
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”
[7] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
…
III – cobrar tributos:
- a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
- b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
- c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”
[8] TORRES, Heleno Taveira. Temporalidade e Segurança Jurídica – Irretroatividade e Anterioridade Tributárias. Portal do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional – SINPROFAZ, em 04 out. 2011.. Disponível em https://shre.ink/Mnws. Acesso em 28 abr. 2025.
[9] “Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:
…
IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.”
[10] “Art. 5o A ementa será grafada por meio de caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei.
Art. 6o O preâmbulo indicará o órgão ou instituição competente para a prática do ato e sua base legal.“
Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp95.htm. Acesso em 28 abr. 2025.
[11] “Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;
IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.”
“
[12] Vide precedente do Tema de Repercussão Geral 1093, decorrente da análise do Convênio ICMS 93/2015 que extrapolou sua função tratando de tema afeitos à lei, que inclusive, deveria ser complementar como determinado pelo art. 146, III, “b” da Constituição Federal que determina que obrigações tributárias devem estar contidas em no contexto das leis complementares, como é o caso do CTN, reconhecido materialmente como tal por conta da Constituição Federal de 1967 (embora formalmente e originalmente ordinária), por força do art. 7º do Ato Complementar 36/67. Disponível em https://shre.ink/MUUA. Acesso em 28 abr. 2025.
[13] Disponível em www.confaz.fazenda.gov.br/menu-de-apoio/competencias. Acesso em 28 abr. 2025.
[14] Dentre as suas atribuições, o referido sistema, instituído pelo Convênio S/Nº de 1970 (Disponível em www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/ajustes/sinief/cvsn_70. Acesso em 28 abr. 2025), considerou as seguintes premissas, que convalidam o texto aqui produzido:
- a racionalização e a integração de controles e de fiscalização, alicerçados em informações que têm como fonte a escrita e o documentário fiscais dos contribuintes do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto de Circulação de Mercadorias, poderão conduzir a uma Administração Tributária mais justa e mais eficaz;
- a implantação de um sistema básico e homogêneo de informações levará ao conhecimento, mais rápido e preciso, das estatísticas indispensáveis à formulação de políticas econômico-fiscais dos diversos níveis de governo;
- um Sistema de Informações Econômico-Fiscais adequado, promover-se-á coleta, elaboração e distribuição de dados básicos, essenciais à implantação de uma política tributária realista;
- a necessidade de unificar os livros e documentos fiscais a serem utilizados pelos contribuintes do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto de Circulação de Mercadorias;
- a simplificação e a harmonização de exigências legais poderão reduzir despesas decorrentes de obrigações tributárias acessórias, com reflexos favoráveis no custo da comercialização das mercadorias;”
[15] “Art. 102. A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União.”